Três anos após o rompimento de uma barragem em Mariana, outro vazamento em Minas Gerais, desta vez em Brumadinho, deixa um rastro de destruição, mortes e pessoas desaparecidas. Especialistas em direito ambiental ouvidos pela BBC News Brasil apontam que a repetição desse tipo de evento não se deve a problemas com a legislação ambiental, mas a fiscalização falha e punição lenta dos responsáveis.
Ao menos nove pessoas morreram e mais de 300 estão desaparecidas
A Política Nacional de Meio Ambiente estabelece desde 1981 mecanismos e instrumentos de proteção nesta área no Brasil.
Seus princípios foram reafirmados pela Constituição Federal em 1988, que determina que "todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações".
Uma década depois, passou a vigorar também a lei de crimes ambientais, que estabelece as sanções penais e administrativas para condutas e atividades que geram ao meio ambiente.
E, desde 2010, a Política Nacional de Segurança de Barragens obriga as empresas a terem um plano de segurança e que seja feita uma classificação destas estruturas por nível de risco e dano potencial, cria um sistema nacional de informações sobre barragens e prevê uma série de obrigações de produção de documentos a serem avaliados pelo poder público.
'O problema não está na lei'
Rômulo Sampaio, professor de direito ambiental da Fundação Getúlio Vargas no Rio de Janeiro, destaca ainda que, desde o incidente em Mariana, que matou 19 pessoas e é considerado a maior tragédia ambiental da história do país, houve mudanças nas legislações federal e estaduais "para aperfeiçoar os sistemas de informações sobre os riscos das barragens".
"A legislação que temos é suficiente. O problema não está nela, mas em fazer com que ela seja aplicada na prática, porque faltam investimentos nos órgãos de controle. Um segundo acidente em tão pouco tempo mostra que a fiscalização é deficiente e não está conseguindo evitar vazamentos", afirma Sampaio.
Especialistas dizem que falhas na fiscalização fazem com que tragédias se repitam
Além de haver insuficiência de verbas, argumenta o especialista, faltam profissionais qualificados.
"Há órgãos que não têm concurso público há 20 anos. Falta qualificação profissional. Em atividades deste tipo, seriam precisos geólogos, por exemplo, mas nem sempre tem. Você encontra pessoas trabalhando nestes locais com formações bem diferentes das necessárias."
Onofre Alves, professor de direito público da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), destaca que uma das alterações na legislação estadual mineira foi a proibição da construção de barragens de sedimentação, como a de Brumadinho e Mariana.
No entanto, afirma ele, o enrijecimento da legislação não é suficiente, porque já existem centenas barragens de mineração em Minas Gerais, muitas delas de sedimentação, e a estrutura de fiscalização é insuficiente para garantir sua segurança.
"Temos de lidar com esse passado. Os relatórios de estabilidade das barragens são apresentados pelas empresas, e cabe ao órgão público verificar as informações apresentadas, mas faltam recursos, instrumentos, fiscais e técnicos especializados. Assim, não há rigidez na verificação destes relatórios."
Sampaio diz ainda que o Brasil pode se inspirar em países como Estados Unidos, Austrália, Japão e na Europa, onde há mecanismos "mais criativos de fazer politica ambiental".
"Há sistemas de autofiscalização mais modernos que não são aplicados no Brasil, como um sistema de auditoria de relatórios por empresas concorrentes, por exemplo."
Por sua vez, Fernando Walcacer, professor de direito ambiental da PUC-Rio, avalia que os processos de licenciamento ambiental "são muito favoráveis para as empresas".
"Não é segredo que as empresas elegem políticos e, por isso, têm muito poder e uma voz muito forte no poder público. Com isso, os licenciamentos não são tão rigorosos como deveriam", diz.
Walcacer diz ainda ser preocupante as críticas feitas ao Ibama pelo presidente Jair Bolsonaro, que disse que não admitiria que o órgão multasse "a torto e a direito por aí".
Ao mesmo tempo, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, defendeu ser necessário "dar celeridade, agilidade, estabilidade e segurança jurídica" ao processo de licenciamento ambiental sem que isso signifique "afrouxar as garantias para o meio ambiente".
"Nunca houve projeto de afrouxamento de fiscalização ambiental, pelo contrário. Não é só possível como necessário tornar a legislação mais roigorosa e nos aprofundar em questões complexas e foco nas situações de maior risco", disse o ministro em entrevista coletiva neste sábado.
No entanto, Walcacer diz que, ainda que "nossa legislação seja boa, já tivemos retrocessos, como o novo Código Florestal, e ainda há um projeto pronto para ser votado no Congresso que, na prática, acaba com o licenciamento ambiental".
Quantas barragens são seguras?
De acordo com a Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Minas Gerais (Semad), o Estado tem 688 barragens, das quais 677 têm estabilidade garantida por auditorias. Em 4, o auditor não apresentou uma conclusão, e 7 tem estabilidade não garantida pelo auditor. "A quantidade de barragens com estabilidade garantida aumentou de 96,7% em 2017 para 98,4% em 2018", afirmou a Semad.
No cadastro nacional de barragens, a do Córrego do Feijão é classificada como uma estrutura de pequeno porte com baixo risco. A lei 12.334/10 explica que o risco é calculado "em função das características técnicas, do estado de conservação do empreendimento e do atendimento ao Plano de Segurança da Barragem".
A competência pela fiscalização de barragens de mineração é da Agência Nacional de Mineração (ANM), ligada ao Ministério de Minas e Energia.
A ANM disse em um comunicado que a barragem em Brumadinho não tinha "pendências documentais" e que a Vale apresentou em março, junho e setembro de 2018 declarações de estabilidade da estrutura, que foram auditados de forma independente.
"Conforme informações declaradas pela empresa no Sistema Integrado de Gestão de Segurança de Barragens de Mineração (SIGBM) da ANM, baseada em vistoria realizada em dezembro último, por um grupo de técnicos da empresa, estes não encontraram indícios de problemas relacionados à segurança desta estrutura."
'Lentidão na Justiça e impunidade levam ao descaso'
Uma vez ocorrido um acidente e verificado o dano, a legislação brasileira na área ambiental estabelece que empresas e seus sócios têm uma responsabilidade ilimitada sobre o que aconteceu, explica Walcacer.
"Se houver uma relação de causa e efeito entre o dano e o empreedimento, as empresas e seus sócios podem ser alvos de sanções. Não existe uma discussão se houve culpa ou não para que sejam aplicadas", afirma.
Rompimento de barragem gerou avalanche de lama em Brumadinho
No entanto, diz o especialista, a impunidade em outros episódios do passado, como no caso de Mariana, faz com que exista um descaso com a segurança de barragens de mineração.
"Após três anos, não foram responsabilizados nenhum diretor da Samarco, da Vale ou da BHP Billiton [as empresas que administravam pela barragem em Mariana]. As companhias estão sendo condenadas a pagar multas e indenizações, mas os processos na esfera criminal não andam e vão acabar prescrevendo", diz Walcacer.
"Não basta punir com ações civis. Isso é o mínimo. Mas, para mudar as condutas das empresas e seus executivos, é preciso também punir criminalmente, porque ninguém quer ir para a cadeia."
Sampaio, da FGV-Rio, concorda que o processo de responsabilização dos culpados por incidentes como os de Mariana e, agora, de Brumadinho, é falho.
"Se temos uma lei tão rígida, por que isso ainda acontece? Estamos errando no antes, ao fiscalizar, e no depois, ao punir. Temos de fazer com que a conta nestes casos seja salgada e que ela chegue mais rápido aos responsáveis."
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